A festa dos Arcanjos São Miguel, São Gabriel e São Rafael, que a Igreja comemora no dia 29 de setembro, dá-nos oportunidade de voltar a um tema bastante olvidado nos dias de hoje: a existência dos anjos e sua atuação no Universo criado por Deus. É notório o fato de que, de um modo ou de outro, os anjos há muito tempo vêm sendo esquecidos, quando não vistos de maneira bastante unilateral e às vezes distorcida.
Embora não sejam poucas as alusões aos puros espíritos tanto no Antigo como no Novo Testamento, na vida espiritual e nas atividades quotidianas dos católicos hodiernos, a presença dos anjos é praticamente desconhecida. Quase não se fala deles.
Entretanto, não só a Sagrada Escritura, mas os Padres e Doutores da Igreja abordaram com freqüência temas como os referentes à natureza e aos vários coros de anjos, bem como às múltiplas formas de sua ação. Dentre estas, merece ser realçada o governo do universo material, que constitui o objeto primordial do presente artigo.
Convido o leitor a um breve passeio na floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, à noite. A cor do céu é de um azul profundo, as estrelas cintilam como brilhantes, a lua é branca como a neve. A temperatura está fresca, algumas palmeiras imperiais balançam majestosamente ao sopro do vento. Um cão, o fiel amigo do homem, nos acompanha.
– Linda cena!, exclamará alguém.
Não há dúvida. Mas não será a primeira vez que semelhante exclamação brota de lábios humanos ao observar o universo, que os gregos chamavam cosmos. Examinando a natureza, compreenderam que ela estava em ordem e era bela. Daí o fato de denominarem o universo de cosmos.
É normal que, na admiração do universo, os homens façam muitas perguntas para as quais, obviamente, desejam obter respostas. Se bem que todo homem tenha algo de filósofo –– o homem é um animal racional! –– nem sempre pode, por si mesmo, acertar, procurando dar respostas a tantas e tantas questões, como as que surgem da observação da maravilhosa ordem da natureza. Nessas respostas, tanto filósofos gregos, quanto de todas as épocas encontraram dificuldades.
Nós, porém, contamos com o potente auxílio da Santa Igreja Católica, única, plena e totalmente detentora da Verdade. Na doutrina teológica e filosófica, elaborada sob seu influxo benéfico, buscaremos as respostas a tantas indagações legítimas.
Para isso, recorreremos ao Doutor Comum Universal, o admirável Santo Tomás de Aquino. Apresentaremos em notas, no fim deste artigo, indicações das obras desse insigne Doutor, nas quais se encontram os fundamentos das afirmações que figuram no presente texto.
Deus fez as criaturas para transmitir sua bondade e representá-la mediante os seres criados. Mas Ele necessitou fazê-los distintos e desiguais, para representar de maneira mais perfeita a bondade divina(1) ou, em outras palavras, o Criador fez algumas criaturas simples, outras compostas; umas corruptíveis, outras incorruptíveis(2). Ou seja, Deus criou os anjos, homens, animais, plantas, astros e minerais, pois se todas as coisas fossem iguais o todo não seria perfeito(3).
Tanto os anjos como as criaturas corporais constituem um só universo(4). Os anjos foram criados juntamente com as criaturas corporais(5), embora pudessem ter sido criados antes(6).
Todas as coisas – absolutamente todas – foram criadas diretamente por Deus(7) E as criaturas corporais foram criadas por Ele sem o auxílio dos anjos(8).
Os corpos são governados pelos anjos
Deus é a causa da ação de qualquer criatura, na medida em que lhe dá força para agir, enquanto as conserva, as inclina à ação, e enquanto por sua força [da Providência], as outras forças agem(9). Todas as criaturas corporais são governadas pela Providência divina, contudo por meio dos anjos. Pois a “providência dos anjos é universal e estende-se sobre todas as criaturas corporais. Donde se deve dizer, conforme as sentenças dos santos, que desta maneira os corpos são administrados por meio dos anjos; ou seja, enquanto movem os corpos superiores, por cujo movimento causam o movimento dos corpos inferiores”(10).
Naturalmente é preciso uma grande multidão de anjos para exercer o governo das coisas criadas. Não é de estranhar, pois, que Santo Tomás diga, em sentença muito expressiva, que o número dos anjos “é finito para Deus, mas infinito para nós [homens]”(11). Essa multidão como que infinita de anjos está ordenada hierarquicamente, conforme explica Santo Tomás em nove coros, e cabe ao quinto coro –– o das Virtudes –– reger a natureza corpórea, além de receber de Deus um poder especial para realizar alguns milagres que, por sua natureza, os anjos não teriam capacidade de realizar(12).
Eis algumas razões que o Doutor Comum apresenta para o governo dos anjos sobre a criação corpórea:
“É norma geral tanto na ordem das coisas humanas como na das naturais, que a potestade particular seja governada e regida pela potestade universal.... É manifesto que a força de qualquer corpo é mais particular que a força da substância espiritual... Assim como os anjos inferiores, que têm formas menos universais, são regidos pelos superiores, do mesmo modo todas as coisas corporais são regidas pelos anjos”(13).
Argumenta ainda Santo Tomás que, “segundo a ordem da Providência divina em todas as coisas, os seres móveis e variáveis são movidos e governados pelos imóveis e invariáveis; como os , corpos todos pelas substâncias espirituais e imóveis, e os corpos terrestres pelos celestes, que são substancialmente invariáveis”(14).
Na ação dos anjos como na dos demônios sobre as coisas visíveis – pela qual podem mudar, se desejarem, a forma de uma coisa, como fazer, por exemplo, variar a cor de uma planta –, eles se servem para isso de germens corporais.
[...]
Texto de José Maria Rivoir
Obras Consultadas:
1. Suma Teológica, I. q. 47, a. 1 et 2.
2. De Potentia, q. 3, a. 16.
3. De Substantiis Separatis, c. 12.
4. Suma Teológica, I. q. 61, a. 3, e De Potentia, q. 3, a. 18.
5. De Potentia, q. 3, a. 18; Suma Teológica, I q. 61, a. 3; II Sententiae D. 2, q. 1, a. 3; e D. 12, q. 1, a. 2; e De Substantiis Separatis c. 17, D.
6. De Potentia q. 3, a. 19 .
7. Suma Teológica, I q. 44, a. 1. e De Polenlia q. 3, a. 5.
8. Suma Teológica, I q. 65, a. 3.
9. De Potentia q. 3, a. 7.
10. De Veritate q. 5, a. 8; Suma Teológica, I. q. 61, a.4; De Subslanliis Separatis c. , II;Suma Contra Genliles IIl, cc. 76 a 79.
11. II Sententiae D. 3, q. 1, a.3.
12. Suma Contra Gentiles lII, 80; SumaTeológica, I q. 113, a. 3; II Sententiae D. 9, q. 1, a. 3 e Comp. Theol. c. 126.
13. Suma Teológica, I q. 110, a. 1.
14. Suma Teológica, I q: 113, a. 1.
15. Suma Teológica, I q. 105, a. 1 ad 1; De Maio q. 16, a. 9.
(Revista Catolicismo de Setembro de 1992)